quinta-feira, 17 de outubro de 2013

"A garota que eu quero" de Markus Zusak: uma história de resiliência e afirmação da masculinidade

Olavo Barreto de Souza

Há muito tempo vinha me privando de literaturas que não fossem nacionais. Por estudar a Literatura Brasileira, dela sendo, incondicionalmente devoto, persisti meu ufanismo protelando leituras que não fossem imaginadas e escritas por autores brasileiros. Acredito que no meu sangue exista um pouco do sangue de Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto que, na nossa literatura, representa o maior nacionalista brasileiro de todos os tempos. Pois é, me meti a major Quaresma, sempre carrancudo com o que não era brasileiro em literatura, mas quando a gente age por impulsão, quando nossos instintos ficam à flor da pele, não podemos resistir à tentação de ceder aos nossos desejos - salvo você seja um celibatário de alta ordem, muito compenetrado com seus ideias. Mas, desta vez, me cedi ao impulso de leitor apaixonado por histórias que envolvem o mundo adolescente. E também, me cedi à voz de outro leitor que falava com entusiasmo da leitura feita. Foi assim que deixei a xenofobia de lado e comecei a ler A garota que eu quero do escritor australiano Markus Zusak. Me cedi ao pecado de ler literatura estrangeira. Mas, com certeza, esse pecado já foi perdoado pelo crivo da consciência. Até porque, ler, para mim, será sempre um dos mais eficazes lenitivos.
A literatura, como criação do homem, trabalha com a vivência da humanidade. Costumo sempre dizer que a literatura emana toda a experiência do homem. E trazendo todo este ideal de humanização, como disse Antônio Candido, a literatura “(...) não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.”[i]. Assim, o texto literário tem a capacidade de fazer o homem voltar para si para pensar naquilo que lhe é vital. Como um aceno, a literatura mostra ao homem quem ele é, e como ele pode se apresentar. Lygia Fagundes Telles, também já afirmava em palestra que o escritor pode ser louco, mas seus livros podem livrar o leitor da loucura[ii]. Ou seja, a leitura literária pode narrar um trauma, uma dor, de modo que o leitor, ao ter contato com o texto literário, poderá usufruir do conteúdo expresso nele para superar a sua lamúria. O romance que resenhamos aqui, de algum modo, pode estar associado a este ideal de consolação.
Markus Zusak em A garota que eu quero trabalha, dentre outros temas, de forma ampla com a temática da resiliência. Segundo a psicologia, a resiliência é a capacidade que o indivíduo tem para superar momentos de adversidade, sejam estes grande períodos de estresses, humilhações, dentre outros eventos que limitam a capacidade do sujeito. O ideal de força, na resiliência, toma lugar de destaque, pois, como em uma guerra que se luta só, o resiliente faz do seu sofrimento a principal arma de superação.
Publicado em 2013 pela Intrínseca, A garota que eu quero encerra uma trilogia escrita pelo autor australiano que contém os títulos, além do citado, Bom de briga e O azarão, ambos publicados pela Bertrand Brasil. Não tive acesso aos dois últimos livros citados, mas, o romance que propomos para leitura analítica dá um sinal geral de como poderia ter sido a narrativas desses outros romances.
Cameron Wolfe, é um adolescente bastante apagado pelo brilho das luzes de seus irmãos Rubem Wolfe e Stive Wolfe. Dentre esses três, ele é o caçula, de aparência singela, e sem muitos traços de superioridade masculina, uma vez que Rube, como ele próprio chama o irmão, é o cara mais forte que ele conhece, bom de briga e namorador; Stive, é jogador de futebol americano, bastante conhecido e com algumas vitórias na lista. De fato, frente a esta realidade Cam, como ele é chamado carinhosamente pelos seus familiares, é um garoto a menos. A narrativa ocorre em uma cidade metropolitana, visto que as personagens utilizam metrô e as descrições de ambientes urbanos são bastante presentes. A família Wolfe ainda formada por Sarah, irmã das personagens citas, e também pelos Sr. e Sra. Wolfe, pais de Cam e dos outros. Na casa paterna moram todos, menos Stive, que já maior de idade e possui sua própria casa. Dono de si, representa para Cam um modelo consagrado de vencedor. Pelas suas conquistas financeiras e de prestígio social. O outro ídolo de Cam é Rube, vencedor de inúmeras brigas com os rapazes da cidade, temido e respeitado por todos, além de ser, aquilo que compreendemos como macho alfa, muito namorador, sempre está com uma parceira nova. Além disso, está em ótimo estado físico e representa um perfume de sedução para as mulheres que se sedem fácil para ele através, apenas, de um simples olhar ou um mexido no cabelo. Atributos estes que Cam não tem, e inveja saudavelmente o irmão.
E Cam, quem é? Como ele próprio diz, um fracassado, um erro, um danado. Durante todo romance vemos a insatisfação desta personagem com a sua condição de masculinidade. Como ele não tem caracteres que lhe confere força, sendo sempre algo menor, frente aos outros homens, sua imagem está associada ao obscuro e ao introspectivo. Como o próprio Rube diz no capítulo inicial, se dirigindo a Cam, “Você é um cara meio solitário, não é?” (ZUSAK, 2013, p. 14). É uma solidão de alma que Cameron sofre, mais dolorida do que a dor que arrasa o braço. Mesmo com sua masculinidade atenuada pelo brilho dos seus irmãos, Cam, sexualmente está muito bem resolvido. A tensão pode demonstrar sua visão erotizante da mulher, faz com que, em pensamento, ele deseje se afogar no corpo feminino. Suas referências à mulher são sempre regadas com um sentimento amplo de desejo. Desejo esse que irá aflorar-se pela última namorada de Rube, a artista de rua Octavia.
Cam, em sua inocência de alma, espera dias e noites diante da casa de uma ex-namorada de Rube a oportunidade de declarar seu amor por ela. Os dias passam e a moça nunca aparece, mas ele nunca perdeu a esperança de vê-la. Tempos depois, após a sucessão de namoradas de Rube, o relacionamento dele com Octavia acaba. Eis que surge a oportunidade de Cam se apaixonar por ela, é o que ocorre. Entre cenas de amor e desejo, Octavia e Cam se realizam profundamente em seus anseios amorosos. Neste ínterim, Rube inicia relacionamento com uma vadia, assim Cam a declara, chamada Julia. A nova namorada de Rube vem de um namoro complicado, em que os laços ainda não foram totalmente cortados com o misterioso “telefonador”. O ex-namorado de Julia, sabendo do ocorrido, começa a telefonar várias vezes para a casa dos Wolfe, inicialmente não esboçava nada durante as ligações, depois começou a ameaçar Rube de morte. É tempo que o próprio Rube, cansado de tanto abuso, marca um dia para o confronto in presentia. O telefonador não aparece. Os dias passam e no segundo encontro ele aparece, e drasticamente Rube é massacrado.
Ser masculinizado por um ideal de força é um privilégio paras as sociedades ocidentais. De maneira geral, a virilidade divide os papeis sociais entre os indivíduos macho e fêmea (Cf. BOURDIEU, 2011). O construto histórico-social da masculinidade, conforme Chodorow (apud BONNICI, 2007, p. 177) “(...) inclui a crença na superioridade masculina”. Esta superioridade demanda em seu conceito uma compreensão formada psicossocialmente na cabeça do homem de que ele foi designado para reinar sobre todos. Nas sua constituição sobre de “ser” deve estar incutido o valor da diferença crucial entre o corpo do dominado, passivo e menor, e o corpo do dominante, ativo e maior. Na relação entre o homem e seu igual esta relação se dá de forma incisiva. Obter o título de macho alfa se dá à duras penas. E como na compreensão que ora formulamos o ideal de força está em foco, assim, o homem que tenta dominar outro homem, efetiva seu domínio tentando destruir o que lhe parece igual.
E esta dominação inter-masculina permeou toda a leitura que fiz do romance do Zusak. De modo, a afirmar sua masculinidade, Rube se mostra dominador em dois aspectos. Primeiro, afirmando-se macho pela facilidade de troca de parceiras. Não há relato no romance de contato sexual entre ele e suas namoradas, mas, o simples fato de ter a mulher como objeto de pertença já dignifica seu caráter de dominador. Tendo nesta prática o direito de optar pelo objeto feminino que quisesse, ao seu bel prazer. O segundo ponto, refere-se a afirmação de masculinidade para com seus pares. Desse modo, o seu irmão Cam, representa a inferioridade, o campo da falta. A compreensão androcêntrica, ou seja, que detém o homem como modelo para tudo, afirma-se pela contraposição de modelos. Enquanto neste pensamento, a mulher representa a base para a sustentação do homem, pois ele tem que dialogar com algo que lhe é oposto para se afirmar, compreendemos também que, na definição de macho dominador no romance, além de Rube se colocar em oposição às suas parceiras, ele também se coloca em contraste à Cam, que não possui os caracteres que dignificam como dominador. Esta tensão está compósita, de certo modo, em toda narrativa. Mas, com o desenrolar da trama, principalmente no clímax da história, o ideal da resiliência se ativa para definir o contraponto dos papeis.
Durante a briga entre o “telefonador” e Rube, há muito sangue, o narrador não nos dá notícia do fato em detalhes, mas compreendemos tudo através do pensamento de Cam. Como irmão solícito ao domínio de Rube, Cam sempre o acompanhou nas batalhas contra o “telefonador”. Mas, nesta última, por conta da interminável demora, ele vai embora e deixa o irmão só. Eis que no meio da noite Cam acorda com um mal pressentimento. Sentia que seu irmão não estava bem. E de fato, ele não estava. Segue em direção do local onde deixara o irmão e o encontra todo ensanguentado:
“Percebi que ele se arrastara para aquela posição junto à cerca. Havia uma pequena trilha de sangue deixando um borrão cor de ferrugem no cimento. Ele parecia haver se arrastado por dois metros, até não poder mais e não conseguir continuar. Eu nunca tinha visto Rubem Wolfe derrotado.” (ZUSAK, 2013, p. 164).
No momento de maior fraqueza e derrota do homem, eis que surge alguém que o segura pela mão e o levanta. Camenron, neste sentido, assume o papel da força que fora desprovida do testemunho de seu irmão. O deslumbramento do Cam sobre o estado de fragilidade de seu irmão, se configura um momento de epifania. Segundo Nádia Battela Gotlib (2003, p. 51), a
“epifania “é uma manifestação espiritual súbita”, em que um objeto se desvenda ao sujeito. Trata-se, em última instância, do modo de ajustar um foco ao objeto, pelo sujeito. Seria um último estágio desta tentativa de ajuste, que se faz primeiro com tentativas, depois, com sucesso.”.
Portanto, o estágio de epifania no romance se confira pela consciência de poder que Cam exerce no cume da narrativa. Durante todo enredo, esta personagem busca um ideal de força espelhado no irmão. Na cena do capítulo 18, em que há a derrota de Rube, este ideal é alcançado por Cam através da contraposição de poder. Rube está desprovido dos acionamentos da força pelo seu estado de fragilidade, Cam, como sujeito determinado assume o papel da força que tanto almejava e aí se estabelece também sua resiliência:
“Enquanto a lua era tragada por uma nuvem, enfiei os braços por baixo das costas e das pernas dele e o levantei. Segurei Rube no colo e o carreguei pelo beco, em direção ao mundo mais largo da rua.
Meus braços doíam e acho que Rube desmaiou, mas eu não podia parar. Não podia deixá-lo cair. Tinha que chegar em casa.” (ZUSAK, 2013, p. 164-5).
O ato de carregar o irmão feito por Cam, representa o clímax da conquista do ideal de poder. Nas mãos dele está a prova de que até o homem que se diz mais forte, também cai. Mas a força maior está naquele que se manteve intacto e socorreu quem necessitava dela. Quando o pensamento da personagem refere-se a levar o irmão ao “em direção ao mundo mais largo da rua” (op. cit.), cremos que isso reflete a afirmação de que Cam vence suas barreiras que impediam a consolidação de sua masculinidade. Mostrar ao mundo que se é forte, assumir-se como homem amplamente, como o “largo da rua”.
Por fim, no último capítulo temos a cena marcante que dá desfecho à consolidação da masculinidade de Cameron. O Seu irmão, Rube, símbolo forte de macho, confere a Cam sua admiração:
- Oi, Cam – disse ele.
- Oi, Rube.
Estava nervoso, deu para perceber.
- O que você veio fazer aqui? – indaguei.
Suas mãos brincavam com os bolsos quando ele se agachou. Nós dois contemplamos a água, e percebi que Rube estava desmoronando, só um pouquinho. Ele olhou para a frente e disse:
- Eu tinha que vir lhe dizer uma coisa...
Olhou para mim então. Estávamos nos olhos um do outro.
- Rube? – chamei.
A água do cais subia e mergulhava.
- Olhe – disse ele -, passei a vida inteira meio que esperando que você me admirasse, sabe?
A expressão de seu rosto me buscou. Assenti.
- Mas agora eu sei – prosseguiu. – Agora eu sei.
Esperei, mas não veio nada. Então perguntei:
- Sabe o quê?
Rube me encantou e sua voz estremeceu ao dizer:
- Sou eu quem admiro você... (ZUSAK, 2013, p. 171-2).
Desse modo, observamos que, com este trecho há a consolidação absoluta da resiliência e da afirmação de Cam na narrativa, uma vez que aquele que era o símbolo máximo de grandeza masculina afirma ao seu semelhante a admiração pelos seus feitos. Ou seja, eleva aquele que antes parecia pequeno. Tudo isso com a ternura própria que a consanguinidade fraterna confere. Quem antes era um fracassado por não ter uma namorada, por não possuir um status de força e coragem, no fim da narrativa ganha tudo isso. Uma amada que completa sua existência e a admiração do irmão, espelho de masculinidade.
Como um romance eu trata da humidade, das experiências do ser humano, seja pelo “amor” ou pela “dor”, o livro de Markus Zusak, encerra suas páginas em tom reflexivo. Vale salientar que Cam é poeta, e no final de cada capítulo temos um exemplo de seus textos. No capítulo final da obra, temos o encerramento do mesmo com o poema “As bordas da palavras”. Neste texto, compreendemos que a vida é feita da circunstância, dos momentos. E que na base dessas experiências está a grande possibilidade de cair, mas de levantar em seguida:
“Penso agora nas bordas das palavras, na lealdade do sangue, na música das meninas, nas mãos dos irmãos e em cães famintos que uivam pela noite.
Há inúmeros momentos a serem lembrados, e às vezes acho que não somos pessoas, na verdade. Talvez sejamos momentos.
Momentos de fraqueza, de força.
Momentos de salvação, de tudo.
Vaguei pela vida real e me escrevi na escuridão das ruas dentro de mim. Vejo pessoas andando pela cidade e me pergunto onde estiveram, e o que os momentos de suas vidas fizeram com elas. Se são parecidas comigo, seus momentos as sustentaram e as derrubaram.” (ZUSAK, 2013, p. 173).

Referências:
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kühner. 10ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 10ª ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Ática, 2003.
ZUSAK, Markus. A garota que eu quero. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

Olavo Barreto de Souza atualmente é estudante do curso de graduação em Letras da UFCG, campus I. Participou de pesquisa sobre a produção literária das poetisas paraibanas na modalidade de projeto de Iniciação Científica. Possui artigos publicados sobre a poesia paraibana escrita por mulheres. Além de estudioso da literatura, é poeta. Suas publicações poéticas estão disponíveis no blog: <todaspalavras.blogspot.com.br>.


[i] CANDIDO, Antonio. “Direito à literatura”. In: Vários escritos (1988). Disponível em: < http://culturaemarxismo.files.wordpress.com/2011/10/candido-antonio-o-direito-c3a0-literatura-in-vc3a1rios-escritos.pdf>.
[ii] TELLES, Lygia Fagundes. Disponível em: < http://www.revistabrasileiros.com.br/2011/01/12/que-tudo-se-realize/>

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