sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Morte do poeta





Ao ler sobre Fernando Mendes Vianna
por Anderson Braga Horta.

Quando morre um poeta,
morre com ele a necessidade da palavra.
Fez o café, sentou na mesa e escreveu.

Entre as linhas de uma quadra,
o último suspiro. 

Silêncio e solidão, acompanhantes,
vigiam a hora do partir.

Intimidade com a palavra é
escrever todos os dias, prega.
Daí, pega a caneta ou digita,
desliza o dedo entre metáforas.

Quem eras tu, amante da palavra,
tão sozinho entre ternos e danças
com o verbo?
Quem foi teu amor, 
quem foram teus filhos,
onde guardaste tua fortuna?

Quando morre um poeta,
morre com ele a necessidade da palavra.
Tom sobre tom de um silêncio
- que diz tudo -
necroarterial.

sábado, 31 de outubro de 2020

Emulação de Cecília

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? Sobre esse vento?
Sobre essa folha que se vai?¹

Essa folha sou eu.
Caída entre tantas outras
nesse mar noturno,
cujas ondas, nebulosas,
me arrastam solitária,
para o lugar que já se foi.

Essa folha sou eu.
Cândida pétala do azul esverdeado;
resto de magia
para um amor que nunca houve,
para um amor que nunca teve,
para um amor que nunca ousou
em se chamar de amor. 

Essa folha sou eu.
Claustro do meu sono,
etéreo sonho, natimorto. 

Essa folha sou eu.
Cálida, seca, sem mim,
entre tantas outras,
nessa noite luminosa
em que sou arrastada,
conduzida e amordaçada,
findando no calabouço
que me perdeu. 

¹ Os versos compõem o poema "Epigrama n.º 09", em Viagem, de Cecília Meireles.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Deleitor de Dom Casmurro

Gostaria de tratar de Dom Casmurro nesse texto não como um ensaio, não como uma análise crítica, demonstrando um projeto de escritura do tão aclamado Bruxo do Cosme Velho. Gostaria de tratar de Dom Casmurro nesse texto, tão somente como um deleitor, como um apaixonado que extravasa em mundos-outros, em casas-outras, em subjetividades-outras, sendo ele o si-mesmo. Dom Casmurro, para mim, nesse texto, é também um fragmento da minha história literária. E sendo um dom, entre minhas mãos, entre meu corpo, entre as linhas do meu desejo pela escrita-leitura, aprecio cada linha que performa Bentinho, Capitu, Escobar, Dona Glória, Ezequiel, Tio Cosme, os do Pádua, o agregado José Dias, a Sancha amiga, dentre outros que animam aquelas linhas, aquelas frases, que poderiam ser tantas outras, de tantos outros modos, mas são apenas um grifo na página - digital ou impressa - matéria, em primeiridade, de uma memória vegetal, de um livro arbitrário, editora Guarnier, Rio de Janeiro, em 1899. E sendo casmurro, me fecho em meus próprios pensamentos, numa solidão luminosa. Numa solidão acompanhada somente de mulheres e homens escritos entre as tramas que envolvem o amor e a amizade, as desconfianças e as deslembranças, a memória do que se era em tempos de seminário e as que se efetuaram através da morte. Fito nessas linhas as adagas de um narrador ferido em sua própria cólera, em seu ressentimento, e em sua busca por segurar sua bênção e destilar sua maldição através de um tempo que repudia um filho, de modo que o faz nascer na velhice. Queria dizer negando e negando afirmo entre narratários interpelados nessa diegese: Bentinho sou eu. E somos todos nós, e somos cada um de nós a buscar um amigo íntimo, um amigo que visualizou o dom e a necessidade nos olhos de Escobar. Entre palavras dissimuladas, entre a sombra e o frescor de uma vertigem, de uma paixão, os olhos de Bentinho, não sendo oblíquos como os de Capitu, somente veem o mar a tomar para si o corpo e a presença de Escobar. Aquelas ondas que firmaram a calúnia sublimada nas têmporas do destino, se alimentaram do vício de Escobar ao mesmo tempo em que colocaram em discussão o tremor e o temor dos danos subsequentes. Queria dizer que não, mas negando afirmo - que gloriosa sua morte! Tristeza mesmo, daquelas de choro entre o respirar ofegante e o fôlego apertado só o da frase: "A terra lhes seja leve!". E assim me vou, como um menino leve. Me deito numa rede, numa cama, no estrado que me suspende entre as horas antes do sono, no silêncio e na solidão de uma noite que lê romances. No transcurso da história, leio numa série Bom Livro, às paginas brancas, entre algarismos romanos, de um presente familiar, seca e enchente dos livros que vieram. Leio entre espinhas no rosto, depois leio de pastas nas mãos, depois leio de canudo entre os braços; e leio, pois sendo um deleitor busco os vestígios de Bentinho em mim, de Escobar em mim, de Capitu em mim na estante de romances brasileiros. Passo das linhas de página branca que estala entre os dedos para o toque suave e reto no corpo de uma página em que as letras somem e aparecem através das mãos. Não são os mesmos aqueles de minha adolescência, aqueles de minha graduação, aqueles do tempo que reveio com Capitu riscando na árvore o nome de Bentinho; de Capitu e Bentinho brincando de siso; do agregado José Dias com sonhos de Europa; de um passo do seminário para o direito. Penso naqueles que vieram antes de mim e sonharam com tão grandes memórias. Não sendo elas póstumas, eram um rico arsenal de fantasia que aqueceu nossa mente e perseguiu nossas ideias. Sendo casmurro, esse livro firma uma instituição: a daqueles que sendo magos das palavras, criam outros reinos; a daqueles que sendo alimentados pelo verbo buscam de página em página, até a exaustão, a face de si mesmos espelhados na Praia da Glória. E ao fechar a contracapa ou deslizar pela última vez o lance da página, descubro que estou órfão daqueles grandes amigos, reunidos pelo Bruxo, em seu dom de encantar as poéticas matérias para releituras.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Cartas

Eu tenho cartas. Algumas delas guardadas num diário. Sei que posso me arrepender por elas, sei que pode ser libertador às direcionar aos seus destinatários. Mas elas existem e isso já é muito sintomático para quem tem saudade do que se sabe e do que se imagina. Para quê guardar cartas? Para quê guardar mágoas e outros sentimentos? Quem guarda cartas como as que tenho, não difere muito dos que têm bombas, dos que têm armas, dos que têm a fé e o sangue nos olhos para levantar uma muralha ou cair de um penhasco. Eu tenho cartas e isso tudo já diz muito sobre meu eu, minhas crenças e minha impossibilidade de enviá-las. Sou um menino num monte, isolado, na busca de uma solidão interior na qual se ouve apenas a música da melancolia de suas decisões pseudas. Sou esse menino que cria cenários e imagina o mundo no qual se podem viver em elipses ao mesmo tempo em que se expressam orações declarativas com ponto de exclamação no final. Eu tenho cartas. E elas podem ser destinadas ou serem guardadas com túmulos, em confessionários ou nas ondas do mar entre pétalas brancas e perfume da alma de flores. Vêm os dias, vêm as distâncias, o coração acelera, o coração acalma, vêm os pensamentos, vêm os carmas, vem a vida na luz de vela, síncope estagnada. Eu tenho cartas. Uma, duas, três, as que escrevi, as que queimei, as que foram entregues, as que nunca serão, as que ainda não foram feitas. De despedida, de amor, de consolo, de desagravo, de perdão, de culpa, de absolvição. Eu não posso fazer nada se elas existem e quebram todos os dias a possibilidade de ação, porque elas são bombas, são rifles, são armas, mesmo sendo cartas. Eu tenho cartas e quisera eu ter um amigo que as pudesse ler. Um amigo íntimo que não quebrasse o sigilo, o selo dos conteúdos que me amarram em sonhos, em ideações, em fugas e em arrependimentos. Onde está esse amigo? onde está sua face que ainda não encontrei? Na verdade, eu creio na sua existência no moço do espelho, no menino do espelho, no homem do espelho, no velho do espelho, tão somente neles. Somente ele é casa eterna e cofre seguro. E saiba, ele tem cartas. Cartas de condenação, cartas de remissão, cartas que abrem cartas. De futuro elas entendem, profetizas, bruxas, videntes do amanhecer. Só as cartas podem vencer a peste que é padecer nos sentimentos que tornam os meus pés e minhas mãos frios ao sol flamejante. Eu tenho cartas e lerei para você em sonho. Naquele dia em que teu corpo sofrer a maior calúnia de um dia cheio, naquele dia em que teus olhos estiverem ardentes e que o fogo da tua alma queime teus lençóis, em delírio. Nesse mesmo dia, no sonho, irei aparecer em bilocação para te ler as minhas cartas santas, etéreas, de um deus interior que me governa. Eu tenho cartas.

domingo, 26 de abril de 2020

Quarentena


Entro em quarentena com a sensação de que não serei mais o mesmo. Minha alma aporta em outro lugar que desconheço; trafego em territórios em que minha visão turva me leva apenas pela intuição. Quem sou? Me pergunto entre o frescor da névoa que bate em meu rosto e o frio que perfura minha alma. Entro em quarentena, num entrar que nunca esteve tão pesado, apartado de consolações. Entro em quarentena e sofro com a lástima de perceber a minha face e não poder beijá-la. Admiro esses pelos que cercam o meu rosto; as linhas de expressão que calejam; o resquício de uma adolescência matizada da acne e do medo da vida. Entro em quarentena homem, mas sou mesmo um menino. Sinto perfurar em meu peito a angústia que sempre esteve aqui; o medo que sempre foi minha sombra; o cárcere em que arrasto os anos tendo a chave para o abrir. Entro em quarentena, vivendo num deserto. Nele encontramos tudo aquilo que é a miragem de nossos anseios. Nele encontramos a intensidade do sentimento e o espectro de uma realidade possível somente na perturbação do sono. Me falta a água, me falta a comida, mas sobrevivo. Entro em quarentena, porque eu preciso, ou talvez eu queira a benesse de sair dela ensanguentado e sujo, porém curado de meus fantasmas. Percebo que o azul do céu pode ser mais intenso se com fome e sede o olharmos; que a paisagem se torna mais bela e mais acolhedora quando há um grito desesperado por conforto; e que minha pele, tostada pelo sol, recobre um coração ferido, desnorteado, mas que ainda bate. Entro em quarentena, sabendo que talvez eu saia dela. Encontro um mestre que me dá coragem; uma fada que interpreta minha face; e um anjo que dá à luz para o que pode vir depois. Entro em quarentena e me deito entre as areias desse suposto mar quente e abafado. Me lanço, me perco, me encontro e o dia se vai. No escuro, percebo que meu corpo sobrevive de conspirações que planejam me matar com o verde lodo da esperança. Caio nessas areias, levanto-me, tento correr e suplicar misericórdia por ser tão jovem e já ter vivido tanto. Não encontro semelhantes, não encontro o diálogo pleno. Quando entro em quarentena, estou isolado. Quem poderá me entender? Mesmo que passe o tempo de isolamento social, continuarei usando meus equipamentos de proteção individual que mascaram a inflamação que rói meu pescoço ao soluço amargurado da reflexão nunca feita. Entro em quarentena, sabendo que o fim pode estar próximo, que o mundo pode desabar na minha cabeça e que eu posso morrer. E caso morra, quem continuará meus sonhos e receberá minhas vitórias? Depositei com todo amor meus sentimentos para receber em juros compostos uma quantia considerável de ganho. Mas entrei em quarentena, e não sei se com a baixa do mercado das consolações eu tenha o lucro que só pode ser usufruído com o coração em festa e a alma que rejubila de alegria. Meu repouso, meu repouso, meu repouso não está tranquilo. Se pudesse tomaria a cloroquina da restituição, aquela que volta no tempo, ou que apaga a memória do meu luto antecipado. Entro em quarentena pensando em prosperar. Será que consigo? Eu sinto uma febre alta de sensações que me travam; sinto uma falta de ar que aperta o meu peito efetuando a angústia de ainda não me ter; e tenho a tosse que cala minhas palavras e me empurra para o nada. Entro em quarentena. Ela acabará? ela findará? Talvez eu precise de um respirador que possa me ajudar a sobreviver ao meu deserto. Talvez meu oxigênio já não seja o bastante para lutar contra mim mesmo. E padeço, e choro, e calo. Não há medicina para os que usam preto, os que saem nas ruas sem a máscara da autoafirmação, nem lavam as mãos do aceite de si, nem passam álcool gel para dirimir os seus danos internos. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Regras de fogo


Constam em mim as novas regras:
aquelas que minha alma nega;
aquelas que sombram à minha frente;
as que se fixam na minha mente;
as que nunca, agora, se esperam.

Constam em mim as regras de fogo:
as que me fazem um ser todo novo;
as que me luzem e me guardam;
as que centelham de conhecimento;
as que me invadem.

Constam em mim as regras de luzidia:
as que me fundam e em mim nascem;
as que me operam em consolação;
as que mostram o que é duro;
as que sopram, batem no muro;
as que desvendam a minha mão.