Tinha ido ao bloco de carnaval sem
pensar na vida. Não eram planos que vinham a sua cabeça naquele momento, era a
carne. Sim, instintos à flor da pele. Era o corpo que falava, tepidamente, ao
som de um remix de marchinhas de carnaval. Alcoolizado, não mais respondia por
sua identidade. Era um avatar abastecido pelo inconformismo de ser deixado nas
vésperas do resultado do concurso para professor efetivo de uma universidade
pública. Não eram as teorias botânicas que agora estavam em diálogo com a sua
biologia? Não era um momento para teorizações. O passado o tinha feito mais
teórico do que prático, um mártir do inconfessável, do silêncio e solidão, sem
catarse. Entre os olhares, entre pessoas, um único sentimento brotava, a
incompletude. Andava sem as pernas. Na verdade, o corpo era carregado pela
justiça mórbida que o álcool lhe proporcionava. Ela, onde estava? Tentava
reconhecer na morena que agora passava um rosto familiar. Por quanto tempo
tinham vividos juntos? Simplesmente, o tinha deixado. O concurso tinha sido
opção dela. Queria ele apenas continuar como assessor do pai nos assuntos
administrativos, mas ela tinha ambição. Hoje terça, na sexta sairia o resultado
final. Uma carreira promissora. Solidão. Depois o pós-doutorado no exterior.
Solidão. Depois o reconhecimento, uma honraria. Solidão. As teorizações sobre
um mundo objetivo, à ponta do cálculo, não resolveriam seu dilema. Mas o
carnaval sim. A vida, naquele instante, dava um passo de frevo. Estava passista
inóspito da inconclusão. Seu desejo era matá-la. Mas ele sabia que isso era
impossível. Não teria em seu sangue o vestígio de cangaceiro que seu bisavô
tinha deixado na família. Era justiça que se clamava. Mas onde ela está agora?
Aquele verão deveria ter acabado na cama e não no telefonema infame. Olhos de
catuaba. Na adolescência, naquele grupo de jovens na igreja. Não imaginava que
isso pudesse ser diferente. Eram juras eternas. Ela se enganou, buscou
dramatizar a felicidade ao lado de um rapaz de sonho pequeno. Tudo que ela
queria era a glória dos altares. Modéstia. Vivia de pernas cobertas, blusas sem
decote, e palavras de sabedoria. Afinal de contas, todo este teatro parou no
telefone, há alguns segundos. Um ‘grand
finale’. Numa noite de calor, às vésperas do ano novo, tinha feito o
planejamento estratégico para uma grande empreiteira. Ao som estalado de beijos
tinha desenhado a casa, batizado os filhos, marcado agendas para uma taça de
espumante que sela as vidas e seus tesouros. Como era engenhosa com aqueles
olhos de catuaba. O rapaz queria estar sóbrio de si mesmo, de seus sonhos
pequenos, mas se deixou embriagar. Como é que ela pôde? Amor, você sabe que vou
ser toda tua, né? Mas, por enquanto, modéstia. Um amor nos tempos da devassa
alheia. Estava de pequena bolsa velada. Veste guardiã da vida. Sedas e um
grosso oxford tapavam um motivo de alívio e cura das misérias humanas. Um
réveillon transpassaria o ano velho teatralizado. Protagonista de fama, teria
causado identificação em toda família, menos na irmã dele. Certa vez, a irmã
tinha dito que ele saísse dessa. Só você que não vê, mano. A coisa dessa aí é
outra. Podia ser tudo, podia ser outra mulher, mas que não fosse o dito ao
telefone. Mas que outra? Dinheiro? Talvez pela irmã ser uma solteirona aos 35
anos, um caso com um homem casado, um incesto com ele na adolescência, uma vida
de gerente de banco, livre de tudo, teria o direito de tecer os fios do seu
destino. O rapaz não tinha tanto dinheiro, tinha um pouco de beleza e vários
contatos com quem podia contar na necessidade. Era careta, mas tinha bons
amigos. A irmã estava certa. Ela estava em outra. No telefone um alô
despretensioso. No carnaval o alô ecoava ao som ritmado das marchinhas. Em cada
grito, em cada gargalhada, um alô. Você está aí? Ansioso pelo resultado do
concurso, disse que estava. Mas, durante o bloco ele não estava nem era. Pensou
em quebrar a garrafa e cortar os pulsos. Viu a polícia. Seria preso ou morto
pelo intento. Um grupo de bêbados entoavam a oração do abismo – “oh, meu bem
não faça isso comigo não”. Uma lágrima. Estava à flor da pele com seus
instintos, mas era nela que pensava. Corpo, som e droga entraram em êxtase
sobre aquela existência de identidade perdida. Olha, quero que você escute bem.
Ele escutava tudo naquele momento. No bloco, estava surdo. O som o tocava pela
vibração, mas a audição estava perpetuada com uma única frase. Um mantra de
eterna execução. Eu estou indo embora. O coração tinha parado. Um réveillon
tinha feito a vida dançar, mas a música parecia que ia ser trocada, e o par
desfeito. Lembrou-se de quando era criança. Na casa da tia passava as férias,
sua prima o adorava. Brincavam até seus corpos não aguentarem mais e pedirem
arrego no colo materno. Não eram primos naquelas férias. Pareciam uma pessoa só
com a caixa da felicidade nos brinquedos. Não bonecas ou carros ou bolas, mas
folhas. Brincavam com as folhas do quintal. Brincava com a menina por
obediência à mãe. Vivia a personagem. No fim das férias, disse que precisava ir
embora. A prima tornou-se lamento. Uma febre incorporou-se na pequena mulher.
As férias tinham acabado para ele também com o telefonema. Era personagem
também? Não, não poderia ser. Se tinha dado em corpo, sangue e alma. Não quis
dizer antes, pois tinha medo que você fizesse besteira. No natal, tinha feito
uma declaração de amor, em juras eternas à amada. A família se espantou. Até
parecia que o amor era um causo na vida do jovem. Amava, mas, com reservas –
era o que pensava o pai e a mãe. Aplausos por todos, descrença pelos produtores
da prole. Mas, poderia ser verdade. Estou neste momento indo para o convento
das irmãs consoladoras, darei entrada no noviciado. Choques entre o céu e a
terra. Febre. O telefone desligou. Amor, amasso, amargo. Não estava no
carnaval, estava na quaresma. Páscoa jamais. Um litro de vodca se esvaziava
naquele momento. A praia a vista. Uma miragem. Um sopro. Um novo vigor: Armando
caminhava sobre as águas.
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