Entro em quarentena com a sensação de que não serei mais o mesmo. Minha alma aporta em outro lugar que desconheço; trafego em territórios em que minha visão turva me leva apenas pela intuição. Quem sou? Me pergunto entre o frescor da névoa que bate em meu rosto e o frio que perfura minha alma. Entro em quarentena, num entrar que nunca esteve tão pesado, apartado de consolações. Entro em quarentena e sofro com a lástima de perceber a minha face e não poder beijá-la. Admiro esses pelos que cercam o meu rosto; as linhas de expressão que calejam; o resquício de uma adolescência matizada da acne e do medo da vida. Entro em quarentena homem, mas sou mesmo um menino. Sinto perfurar em meu peito a angústia que sempre esteve aqui; o medo que sempre foi minha sombra; o cárcere em que arrasto os anos tendo a chave para o abrir. Entro em quarentena, vivendo num deserto. Nele encontramos tudo aquilo que é a miragem de nossos anseios. Nele encontramos a intensidade do sentimento e o espectro de uma realidade possível somente na perturbação do sono. Me falta a água, me falta a comida, mas sobrevivo. Entro em quarentena, porque eu preciso, ou talvez eu queira a benesse de sair dela ensanguentado e sujo, porém curado de meus fantasmas. Percebo que o azul do céu pode ser mais intenso se com fome e sede o olharmos; que a paisagem se torna mais bela e mais acolhedora quando há um grito desesperado por conforto; e que minha pele, tostada pelo sol, recobre um coração ferido, desnorteado, mas que ainda bate. Entro em quarentena, sabendo que talvez eu saia dela. Encontro um mestre que me dá coragem; uma fada que interpreta minha face; e um anjo que dá à luz para o que pode vir depois. Entro em quarentena e me deito entre as areias desse suposto mar quente e abafado. Me lanço, me perco, me encontro e o dia se vai. No escuro, percebo que meu corpo sobrevive de conspirações que planejam me matar com o verde lodo da esperança. Caio nessas areias, levanto-me, tento correr e suplicar misericórdia por ser tão jovem e já ter vivido tanto. Não encontro semelhantes, não encontro o diálogo pleno. Quando entro em quarentena, estou isolado. Quem poderá me entender? Mesmo que passe o tempo de isolamento social, continuarei usando meus equipamentos de proteção individual que mascaram a inflamação que rói meu pescoço ao soluço amargurado da reflexão nunca feita. Entro em quarentena, sabendo que o fim pode estar próximo, que o mundo pode desabar na minha cabeça e que eu posso morrer. E caso morra, quem continuará meus sonhos e receberá minhas vitórias? Depositei com todo amor meus sentimentos para receber em juros compostos uma quantia considerável de ganho. Mas entrei em quarentena, e não sei se com a baixa do mercado das consolações eu tenha o lucro que só pode ser usufruído com o coração em festa e a alma que rejubila de alegria. Meu repouso, meu repouso, meu repouso não está tranquilo. Se pudesse tomaria a cloroquina da restituição, aquela que volta no tempo, ou que apaga a memória do meu luto antecipado. Entro em quarentena pensando em prosperar. Será que consigo? Eu sinto uma febre alta de sensações que me travam; sinto uma falta de ar que aperta o meu peito efetuando a angústia de ainda não me ter; e tenho a tosse que cala minhas palavras e me empurra para o nada. Entro em quarentena. Ela acabará? ela findará? Talvez eu precise de um respirador que possa me ajudar a sobreviver ao meu deserto. Talvez meu oxigênio já não seja o bastante para lutar contra mim mesmo. E padeço, e choro, e calo. Não há medicina para os que usam preto, os que saem nas ruas sem a máscara da autoafirmação, nem lavam as mãos do aceite de si, nem passam álcool gel para dirimir os seus danos internos.
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