Gostaria de tratar de Dom Casmurro nesse texto não como um ensaio, não como uma análise crítica, demonstrando um projeto de escritura do tão aclamado Bruxo do Cosme Velho. Gostaria de tratar de Dom Casmurro nesse texto, tão somente como um deleitor, como um apaixonado que extravasa em mundos-outros, em casas-outras, em subjetividades-outras, sendo ele o si-mesmo. Dom Casmurro, para mim, nesse texto, é também um fragmento da minha história literária. E sendo um dom, entre minhas mãos, entre meu corpo, entre as linhas do meu desejo pela escrita-leitura, aprecio cada linha que performa Bentinho, Capitu, Escobar, Dona Glória, Ezequiel, Tio Cosme, os do Pádua, o agregado José Dias, a Sancha amiga, dentre outros que animam aquelas linhas, aquelas frases, que poderiam ser tantas outras, de tantos outros modos, mas são apenas um grifo na página - digital ou impressa - matéria, em primeiridade, de uma memória vegetal, de um livro arbitrário, editora Guarnier, Rio de Janeiro, em 1899. E sendo casmurro, me fecho em meus próprios pensamentos, numa solidão luminosa. Numa solidão acompanhada somente de mulheres e homens escritos entre as tramas que envolvem o amor e a amizade, as desconfianças e as deslembranças, a memória do que se era em tempos de seminário e as que se efetuaram através da morte. Fito nessas linhas as adagas de um narrador ferido em sua própria cólera, em seu ressentimento, e em sua busca por segurar sua bênção e destilar sua maldição através de um tempo que repudia um filho, de modo que o faz nascer na velhice. Queria dizer negando e negando afirmo entre narratários interpelados nessa diegese: Bentinho sou eu. E somos todos nós, e somos cada um de nós a buscar um amigo íntimo, um amigo que visualizou o dom e a necessidade nos olhos de Escobar. Entre palavras dissimuladas, entre a sombra e o frescor de uma vertigem, de uma paixão, os olhos de Bentinho, não sendo oblíquos como os de Capitu, somente veem o mar a tomar para si o corpo e a presença de Escobar. Aquelas ondas que firmaram a calúnia sublimada nas têmporas do destino, se alimentaram do vício de Escobar ao mesmo tempo em que colocaram em discussão o tremor e o temor dos danos subsequentes. Queria dizer que não, mas negando afirmo - que gloriosa sua morte! Tristeza mesmo, daquelas de choro entre o respirar ofegante e o fôlego apertado só o da frase: "A terra lhes seja leve!". E assim me vou, como um menino leve. Me deito numa rede, numa cama, no estrado que me suspende entre as horas antes do sono, no silêncio e na solidão de uma noite que lê romances. No transcurso da história, leio numa série Bom Livro, às paginas brancas, entre algarismos romanos, de um presente familiar, seca e enchente dos livros que vieram. Leio entre espinhas no rosto, depois leio de pastas nas mãos, depois leio de canudo entre os braços; e leio, pois sendo um deleitor busco os vestígios de Bentinho em mim, de Escobar em mim, de Capitu em mim na estante de romances brasileiros. Passo das linhas de página branca que estala entre os dedos para o toque suave e reto no corpo de uma página em que as letras somem e aparecem através das mãos. Não são os mesmos aqueles de minha adolescência, aqueles de minha graduação, aqueles do tempo que reveio com Capitu riscando na árvore o nome de Bentinho; de Capitu e Bentinho brincando de siso; do agregado José Dias com sonhos de Europa; de um passo do seminário para o direito. Penso naqueles que vieram antes de mim e sonharam com tão grandes memórias. Não sendo elas póstumas, eram um rico arsenal de fantasia que aqueceu nossa mente e perseguiu nossas ideias. Sendo casmurro, esse livro firma uma instituição: a daqueles que sendo magos das palavras, criam outros reinos; a daqueles que sendo alimentados pelo verbo buscam de página em página, até a exaustão, a face de si mesmos espelhados na Praia da Glória. E ao fechar a contracapa ou deslizar pela última vez o lance da página, descubro que estou órfão daqueles grandes amigos, reunidos pelo Bruxo, em seu dom de encantar as poéticas matérias para releituras.
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