segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Cartas

Eu tenho cartas. Algumas delas guardadas num diário. Sei que posso me arrepender por elas, sei que pode ser libertador às direcionar aos seus destinatários. Mas elas existem e isso já é muito sintomático para quem tem saudade do que se sabe e do que se imagina. Para quê guardar cartas? Para quê guardar mágoas e outros sentimentos? Quem guarda cartas como as que tenho, não difere muito dos que têm bombas, dos que têm armas, dos que têm a fé e o sangue nos olhos para levantar uma muralha ou cair de um penhasco. Eu tenho cartas e isso tudo já diz muito sobre meu eu, minhas crenças e minha impossibilidade de enviá-las. Sou um menino num monte, isolado, na busca de uma solidão interior na qual se ouve apenas a música da melancolia de suas decisões pseudas. Sou esse menino que cria cenários e imagina o mundo no qual se podem viver em elipses ao mesmo tempo em que se expressam orações declarativas com ponto de exclamação no final. Eu tenho cartas. E elas podem ser destinadas ou serem guardadas com túmulos, em confessionários ou nas ondas do mar entre pétalas brancas e perfume da alma de flores. Vêm os dias, vêm as distâncias, o coração acelera, o coração acalma, vêm os pensamentos, vêm os carmas, vem a vida na luz de vela, síncope estagnada. Eu tenho cartas. Uma, duas, três, as que escrevi, as que queimei, as que foram entregues, as que nunca serão, as que ainda não foram feitas. De despedida, de amor, de consolo, de desagravo, de perdão, de culpa, de absolvição. Eu não posso fazer nada se elas existem e quebram todos os dias a possibilidade de ação, porque elas são bombas, são rifles, são armas, mesmo sendo cartas. Eu tenho cartas e quisera eu ter um amigo que as pudesse ler. Um amigo íntimo que não quebrasse o sigilo, o selo dos conteúdos que me amarram em sonhos, em ideações, em fugas e em arrependimentos. Onde está esse amigo? onde está sua face que ainda não encontrei? Na verdade, eu creio na sua existência no moço do espelho, no menino do espelho, no homem do espelho, no velho do espelho, tão somente neles. Somente ele é casa eterna e cofre seguro. E saiba, ele tem cartas. Cartas de condenação, cartas de remissão, cartas que abrem cartas. De futuro elas entendem, profetizas, bruxas, videntes do amanhecer. Só as cartas podem vencer a peste que é padecer nos sentimentos que tornam os meus pés e minhas mãos frios ao sol flamejante. Eu tenho cartas e lerei para você em sonho. Naquele dia em que teu corpo sofrer a maior calúnia de um dia cheio, naquele dia em que teus olhos estiverem ardentes e que o fogo da tua alma queime teus lençóis, em delírio. Nesse mesmo dia, no sonho, irei aparecer em bilocação para te ler as minhas cartas santas, etéreas, de um deus interior que me governa. Eu tenho cartas.

domingo, 26 de abril de 2020

Quarentena


Entro em quarentena com a sensação de que não serei mais o mesmo. Minha alma aporta em outro lugar que desconheço; trafego em territórios em que minha visão turva me leva apenas pela intuição. Quem sou? Me pergunto entre o frescor da névoa que bate em meu rosto e o frio que perfura minha alma. Entro em quarentena, num entrar que nunca esteve tão pesado, apartado de consolações. Entro em quarentena e sofro com a lástima de perceber a minha face e não poder beijá-la. Admiro esses pelos que cercam o meu rosto; as linhas de expressão que calejam; o resquício de uma adolescência matizada da acne e do medo da vida. Entro em quarentena homem, mas sou mesmo um menino. Sinto perfurar em meu peito a angústia que sempre esteve aqui; o medo que sempre foi minha sombra; o cárcere em que arrasto os anos tendo a chave para o abrir. Entro em quarentena, vivendo num deserto. Nele encontramos tudo aquilo que é a miragem de nossos anseios. Nele encontramos a intensidade do sentimento e o espectro de uma realidade possível somente na perturbação do sono. Me falta a água, me falta a comida, mas sobrevivo. Entro em quarentena, porque eu preciso, ou talvez eu queira a benesse de sair dela ensanguentado e sujo, porém curado de meus fantasmas. Percebo que o azul do céu pode ser mais intenso se com fome e sede o olharmos; que a paisagem se torna mais bela e mais acolhedora quando há um grito desesperado por conforto; e que minha pele, tostada pelo sol, recobre um coração ferido, desnorteado, mas que ainda bate. Entro em quarentena, sabendo que talvez eu saia dela. Encontro um mestre que me dá coragem; uma fada que interpreta minha face; e um anjo que dá à luz para o que pode vir depois. Entro em quarentena e me deito entre as areias desse suposto mar quente e abafado. Me lanço, me perco, me encontro e o dia se vai. No escuro, percebo que meu corpo sobrevive de conspirações que planejam me matar com o verde lodo da esperança. Caio nessas areias, levanto-me, tento correr e suplicar misericórdia por ser tão jovem e já ter vivido tanto. Não encontro semelhantes, não encontro o diálogo pleno. Quando entro em quarentena, estou isolado. Quem poderá me entender? Mesmo que passe o tempo de isolamento social, continuarei usando meus equipamentos de proteção individual que mascaram a inflamação que rói meu pescoço ao soluço amargurado da reflexão nunca feita. Entro em quarentena, sabendo que o fim pode estar próximo, que o mundo pode desabar na minha cabeça e que eu posso morrer. E caso morra, quem continuará meus sonhos e receberá minhas vitórias? Depositei com todo amor meus sentimentos para receber em juros compostos uma quantia considerável de ganho. Mas entrei em quarentena, e não sei se com a baixa do mercado das consolações eu tenha o lucro que só pode ser usufruído com o coração em festa e a alma que rejubila de alegria. Meu repouso, meu repouso, meu repouso não está tranquilo. Se pudesse tomaria a cloroquina da restituição, aquela que volta no tempo, ou que apaga a memória do meu luto antecipado. Entro em quarentena pensando em prosperar. Será que consigo? Eu sinto uma febre alta de sensações que me travam; sinto uma falta de ar que aperta o meu peito efetuando a angústia de ainda não me ter; e tenho a tosse que cala minhas palavras e me empurra para o nada. Entro em quarentena. Ela acabará? ela findará? Talvez eu precise de um respirador que possa me ajudar a sobreviver ao meu deserto. Talvez meu oxigênio já não seja o bastante para lutar contra mim mesmo. E padeço, e choro, e calo. Não há medicina para os que usam preto, os que saem nas ruas sem a máscara da autoafirmação, nem lavam as mãos do aceite de si, nem passam álcool gel para dirimir os seus danos internos. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Regras de fogo


Constam em mim as novas regras:
aquelas que minha alma nega;
aquelas que sombram à minha frente;
as que se fixam na minha mente;
as que nunca, agora, se esperam.

Constam em mim as regras de fogo:
as que me fazem um ser todo novo;
as que me luzem e me guardam;
as que centelham de conhecimento;
as que me invadem.

Constam em mim as regras de luzidia:
as que me fundam e em mim nascem;
as que me operam em consolação;
as que mostram o que é duro;
as que sopram, batem no muro;
as que desvendam a minha mão.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

VERBUM


Uma fogueira que estala quando se consome;
uma torrente de águas que afoga a alma de luz;
uma ventania que arrasa o que está mal edificado;
uma chuva que transborda a proteção de um capuz;
um arrepio que torce a espinha em plena madrugada:


assim, e muito mais, é a Tua Palavra no meu horizonte,
essa ponte, esse pórtico, essa escada.

Essa Palavra tão forte de amor e de cruz
cruza sobre os montes a verdade chegada
negando, ainda, a minha turva visão,
o meu não para a vida santa, as mãos postas:
ora levantando o outro, ora centradas.

Mas ainda o fulgor dessa Palavra Santa é tão forte,
tão longo e tão celestial em seu estabelecimento
que por tantos momentos fico cego, surdo e mudo,
caio em sono profundo e chego a esquecê-la...

Mas como num sonho,
vem este professor com Ela na mão:
Santo Antônio, São Domingos de Gusmão,
São Tomás, Santo Inácio de Antioquia,
São João da Cruz, São Luiz Maria
apontando o caminho certo,
a luz da alma, a plena guia.

Acordo: volto ao que sou, ao que professo,
e em claridade volto a adormecer,
a sonhar o sonho dos justos,
a cantar o salmo do alvorecer,
a celebrar o sempiterno
para eu nunca me esquecer:
o Supremo Amor da minha vida.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

SHEKHINAH




Oh! invade, eu me permito,
fogo das delícias celestes.
Eu caio, eu me debruço,
eu rasgo minha vestes
diante da Tua shekhinah.

Oh! invade, eu me permito,
escancaro as minhas portas.
Contigo nada mais importa,
Tu que és o doce alívio,
tu que és o Belíssimo Esposo,
o êxtase da santidade.

Oh! invade, eu me permito,
mergulho, Santo Espírito,
nas labaredas da Tua extensão.
Me possui com sob o anseio
de me tomar-me de novo,
em meu ouvido ter Teu sopro,
em teus braços, nesse casamento.

Seja bem vindo Meu Amado,
à Tua casa que é só tua.
Além dos mares, além da sorte,
na constelação do firmamento
se consome esta alma em paixão.
E na tua shekhinah, a minha casa,
é um templo devoto para Tua adoração.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

À lembrança de um parnasiano


Em 28 de dezembro de 1918, há exatamente 97 anos, partia para o templo das musas, o poeta, entusiasta nacionalista, cronista, amante das letras: Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac. 

Sentado em uma poltrona de sofá, já próximo de sua hora agonizante, pede aos presentes: "deem-me café, papel e pena... eu vou escrever...". Mas a letra e coração do poeta foram silenciados naquele instante. Deixa, nesse momento, um grande legado, dentre eles, a fundação de Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira dedicada ao poeta Gonçalves Dias. Além de deixar-nos sua vasta obra jornalística, literária e didática. Mas também deixa o amor de sua vida, Amélia de Oliveira, a noiva que nunca lhe abandonou, embora não fossem casados. Um amor complicado pelo patriarcalismo.
Após a morte do pai da moça, que consentia o enlace entre a jovem e o poeta, o irmão dela toma o lugar do pai e impede o casamento por considerar Olavo um homem boêmio, por seus poemas, sua veia dionisíaca. Nesse tempo, passa dias e noites fazendo cartas para a sua amada. Muitas são respondidas com breves frases. Não podendo ter a presença de Amélia em seus braços, dorme com as cartas - a certeza do amor correspondido nas letras. Após a morte do poeta, Amélia usa até o fim de sua vida um anel de esmalte preto com as inciais O.B. e todos os dias, interruptamente, visita o túmulo do amado de seu coração. Um amor eternizado nos poemas. 
Conhecido pelo cultismo da forma poética, Bilac é consagrado na literatura brasileira como o príncipe dos poetas. Título conferido por uma revista chamada Fon-fon, em 1907. Conferencista de grande eloquência, arrebatava a plateia com sua oratória. A única biografia que li sobre ele de autoria de Fernando Jorge, "Vida e poesia de Olavo Bilac", relata que em algumas dessas palestras, sempre sobre assuntos literários ou nacionalistas, pessoas lhe dirigiam louvores. Em determinada vez, uma jovem beijou a sua mão e outra inclinou-se a seus pés, por uma conferência, segundo o biógrafo, arrebatadora sobre a obra de Shakespeare. Talvez por esse ar infante, dentre outras coisas, ele deve ter sido considerado príncipe. 
Quem dera eu ser um escritor do cacife do meu xará. Só tenho a agradecer a meu pai por ter desistido de última hora de me registrar como Felipe. Saindo do cartório, o menino recém nascido, chama-se Olavo. Nome que me marcou em muita coisa, me identifico em muito com o poeta. Desde criança me chamam de Bilac. Espero que esse vocativo me torne igual ao meu xará ou, quem sabe, chegue perto. 
Seja na prosa ou na poesia é um autor que precisamos sempre retornar a ler, pois fornece um material canônico de grande valia literária. E as histórias da literatura brasileira não me deixam mentir. Até onde pude pesquisar todas o citam. O parnasiano pode estar fora de moda, mas é imortal. 
Na imagem, deixo um trecho de sua crônica "Ressurreição".

domingo, 27 de dezembro de 2015

O silêncio da escrita


Sim, foi por meio disso que tudo começou. Esta cálida hóstia de nossas mãos, cuja imaginação bélica destrona e eleva um cálice na criação. Sim, foi a culpada. Não nos julgue pelo que não podemos ver, pelo que não podemos sentir, pelo que não podemos prever. Nós temos a fé viva, não cremos no ignoto Deus. Tudo isso é tradução, é traição. Na passagem entre a linha e a espada, curvam-se as infantas diante de sua nobreza. Toda adornada no carmim e por baixo da pele, a lua. Sete fadas, sete presentes, sete reinos, sete selos. A cegueira é branca, o voto é branco, calam-se. Sileo e Tielo, quais dos dois Lacan preveniu? Quem é o fingidor que finge tão completamente um para tão longo amor, tão curta a vida? Que tem sangue eterno e asa ritmada, é desdobrável, eu sou? Olha para o céu azul, levanta a mãozinha, quer tocar o céu, tem e não o tem na mão. A festa acabou, o povo sumiu, a noite esfriou, na parte que me cabe neste latifúndio, irmão das almas, porque tinha uma pedra no meio do caminho. Hoje, uma lua morta, na rua torta, na tua porta. Amanhã vai ser outro dia, vai passar, tudo no mundo passa. Ah, estes olhos postos, em mim, de cigana oblíqua e dissimulada, sedutora madame, do cabelo mais preto que a asa da graúna. Podem voar mundos, morrer astros, sobre as ondas no mar de Vigo. De tudo ao meu amor serei atento, um João Evangelista com um pássaro misterioso, porque tudo vale a pena se alma não é pequena, para viver um grande amor. Só em Parságada tem de tudo, e lá acharei a estrela da manhã, seja no mar salgado, ó pescador da barca bela. Famigerado, os que leem o que escrevem, na dor lida sentem bem, igual a uma noite de sono na cama de seu Tomás da Bolandeira, uma felicidade clandestina. Silêncio e solidão, eu Severino, de tantas Marias, um eu sou.